quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Resenha: FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. (Cap. 3)

FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. 3a ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Cap. 3.

A matriz da elaboração do Plano Real se constituiu de duas vertentes: o "Consenso de Washington" e a experiência do Plano Cruzado. O primeiro como um guia para novos caminhos para a América Latina, com o objetivo de estabilização e de desenvolvimento impulsionados pelo liberalismo, pela globalização e pela reestruturação produtiva. Já o segundo indicando os caminhos que não deveriam ser conduzidos após as discussões sobre a natureza da inflação inercial, a moeda indexada e o choque heterodoxo.
O Consenso de Washington, elaborado em novembro de 1989 numa reunião entre os Estados Unidos, o FMI, o BIRD, o BID e economistas acadêmicos latino-americanos, discutiu as reformas liberais que estavam em andamento no centro e no sul do continente americano e também discutiu as possibilidades de coordenação das ações desses países. No campo fiscal, o Consenso indicou contenção dos gastos públicos, "que deveriam se restringir à manutenção de um 'Estado Mínimo', e a realização de uma reforma tributária - que privilegiasse, sobretudo, a ampliação da base de incidência dos tributos e não o seu aumento e que tivesse menos progressividade do imposto de renda e maior contribuição dos impostos indiretos" (Filgueiras: 2007, p. 95). Nas políticas de estabilização deveriam ser adotados: um regime cambial centrado na dolarização direta ou indireta da economia com sobrevalorização da moeda nacional e uma política monetária passiva. Além disso, "seria imprescindível a liberalização comercial e financeira, que, segundo o 'Consenso', atrairia capitais externos e possibilitaria a inserção competitiva dos países da América Latina na economia mundial" (Filgueiras: 2007, p. 96).
Os investimentos estrangeiros diretos deveriam ter tratamento igual ao capital nacional por serem considerados como instrumentos de complementação da poupança nacional e não deveriam ter restrições na economia, como na área de recursos naturais. "No entanto, os governos não deveriam atrair capitais estrangeiros para produção de manufaturas para exportação através de incentivos ficais ou creditícios" (ibid.) E neste pacote ainda entraram as privatizações e desregulações das atividades econômicas como medidas, principalmente no caso da primeira, para abater as dívidas dos governos.
Quatro anos após a primeira reunião, houve um novo encontro para avaliar o porquê de os capitais internacionais estavam se voltando para a América Latina num cenário de grande liquidez nos mercados financeiros e esses países deveriam atrair esses recursos por meio de implementação de planos de estabilização que efetivariam as privatizações, abririam os mercados financeiros e de produto e estabilizariam o câmbio.  Essa receita prometia inflação baixa, crescimento e inserção na economia mundial globalizada. Contudo a implementação dessa ordem pode gerar problemas sistêmicos nas economias dada a lógica de funcionamento do mercado financeiro internacional e sua característica de ganhos financeiros de curto prazo. A adoção de políticas macroeconômicas não garante a sustentabilidade do fluxo de capitais.
Na segunda matriz do Plano Real, a experiência com a moeda indexada no Plano Cruzado rendeu a ideia de que a desindexação não poderia ser feita com congelamento de preços por conta de seus efeitos controversos nos preços relativos. A Unidade Real de Valor (URV) no Plano teve a mesma função da moeda indexada do Cruzado, com planos para extinguir a indexação de forma abrupta no futuro. Contudo, a URV funcionou apenas como embrião da nova moeda, tendo função de moeda de conta e não de pagamento. Outros aprendizados com o Plano Cruzado foram: a) a inflação não é apenas inercial e um de seus componentes era a fragilidade financeira do Estado; b) mudar abruptamente para uma nova moeda traz as pressões inflacionárias da velha moeda; c) seria necessário uma política monetária  com taxas de juros mais altas para barrar o aumento do consumo com a queda da inflação; d) salário médio da economia pode crescer e pressionar o consumo.
Entre o anúncio em 1993 e a implementação da nova moeda, em 1994, o Plano Real teve três partes: ajuste fiscal, criação da URV e a instituição da nova moeda.  Na primeira parte, o governo de Itamar Franco lançou medidas para reorganizar o setor público incluindo redução e maior eficiência dos gastos; recuperação da receita tributária; fim da inadimplência de Estados e Municípios com a União; controle dos bancos estaduais; saneamento dos bancos federais; aperfeiçoamento e ampliação do programa de privatização. Essas medidas respondem ao problema de desequilíbrio do orçamentário do Estado, em especial a fragilidade de financiamento. De forma geral essa primeira etapa foi para construir a chamada "âncora fiscal" dos preços e garantir aos agentes econômicos que o governo só gastaria o que arrecadassem sem emitir títulos para cobrir déficits. Contudo, as tentativas de ajustes fiscais fracassaram por conta das elevadas taxas de juros.
Na segunda fase, a URV era vista, no início, como mais um índice de inflação, um superindexador que usava três outros índices (IGP-M, IPCA e IPC) para definir as variações do cruzeiro real. A escolha destes índices se deu por conta da aproximação de sua média com o câmbio e o  objetivo de amarrar a URV ao dólar, preparando a "âncora cambial" da nova moeda. A unidade foi importante por não permitir uma mudança abrupta de moeda e começou a passagem de todos os preços do Cruzeiro Real para a URV de modo espontâneo através da fixação imediata dos preços, tarifas e contratos públicos. Dessa forma se impedia que a inflação da moeda antiga contaminasse a nova, ou seja, "seu papel essencial foi o de apagar a memória do passado, eliminando, desse modo, o componente inercial da inflação" (Filgueiras: 2007, p. 105). Por conta da experiência passada de congelamento de preços e do processo de passagem dos preços e contratos públicos para a URV, bem como da passagem compulsória, os preços se aceleraram antes da passagem para a nova moeda, mas nos três meses seguintes houveram pressões para novos ajustes e revisões para baixo desses.
A passagem para a nova moeda, em 1º de julho de 1994, se deu trazendo consigo a "âncora cambial". A taxa de câmbio ficou definida em US$ 1 = R$ 1 e contava com as reservas de dólares feitas desde 1993. Esperava-se emitir reais trimestralmente e esse montante teria correspondência com os dólares depositados no Banco Central e reafirmava-se, mais uma vez, o compromisso de não realizar novas emissões para cobrir déficits primários. Contudo, esses tetos de emissão monetária foram abandonados quando da implementação da moeda, pois houve queda abrupta da inflação apesar do aumento das taxas de juros. Fica evidente também a dolarização da economia brasileira nessa etapa, pois o governo não garantiu a conversibilidade entre as duas moedas. A não intervenção do Banco Central no mercado de câmbio implicou numa deflação dos bens e serviços associados ao dólar, o que contribuiu para o aumento das importações e, devido às altas taxas de juros, um grande entrada de fluxos de capitais de curto prazo e elevado nível de reservas cambiais.




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